por Ermiro Ferreira Neto
A cadeia econômica do setor varejista se caracteriza, dentre outros elementos, sobretudo pela necessidade de representantes comerciais e distribuidores que levem os produtos das indústrias em geral para os rincões mais distantes de um país com dimensões continentais como o nosso. Mais do que uma atividade logística, incumbe a estes intermediários o objetivo de desenvolver mercados para os produtores, estabelecendo relações com comerciantes locais, o que exige deles a compreensão dos costumes e da cultura comercial de cada região.
A importância da atividade desenvolvida pelos representantes comerciais reflete-se na existência de um regulamento específico e antigo, a Lei federal n. 4.886/65, cujo principal objetivo é garantir equilíbrio nas relações estabelecidas por estes agentes com indústrias e produtores em geral. Certas peculiaridades, de fato, justificam a edição do diploma, sendo possível reunir todas elas em torno de uma única diretriz: tanto mais tempo mantém-se um representante ligado a determinada empresa representada, tanto maior será a dependência entre ambos; todavia, esta dependência revela-se muito mais perigosa para o representante, por seu menor porte econômico, o que enseja resultados desastrosos no caso do fim abrupto desta relação contratual.
É certo que a liberdade de contratar detém uma dimensão negativa, o que permite não contratar ou distratar. Se isso, de fato, é intuitivo, não se pode, por outro lado, perder-se de vista que o rompimento abrupto de uma relação contratual é capaz de gerar danos enormes para a parte mais frágil, o que, em uma atividade empresarial, pode levar a parte prejudicada à ruína financeira.
Buscando equilibrar todos estes interesses, a legislação brasileira prevê mecanismos que possam, ao mesmo tempo, garantir o direito de qualquer das partes, numa relação de representação comercial, desligar-se do contrato, sem que, com isto, o representante possa ser seriamente prejudicado. É com este o espírito que o art. 34 da Lei n. 4.886/66, por exemplo, garante ao representante o direito a um aviso prévio mínimo de trinta dias antes ao rompimento unilateral do contrato de prazo indeterminado ou, à escolha da empresa representada, o pagamento de indenização correspondente a 1/3 das comissões auferidas nos três meses anteriores. Sem prejuízo do aviso prévio, o art. 27, inciso “j”, prevê ainda o direito ao pagamento de indenização correspondente a 1/12 “do total da retribuição auferida durante o tempo em que exerceu a representação”.
À parte o que consta da legislação específica, como se viu, deve-se atentar ainda que o Código Civil, para qualquer hipótese de rompimento unilateral de contrato, protege a parte que fez investimentos relevantes com o objetivo de cumprir fielmente suas obrigações avençadas. Assim, nos termos do art. 473, parágrafo único, “se, […], dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos”.
A referida regra do Código Civil não constava da legislação anterior e vai ao encontro da exigência de comportamento leal entre os contratantes (art. 422, Código Civil) e da vedação ao abuso de direito (art. 187, Código Civil). Especificamente para as relações entre representantes comerciais e indústrias em geral, não raro tais contratos são estipulados em regime de exclusividade, o que vincula ainda mais a empresa de representação ao seu representado. Tal relação, estreita e de dependência econômica, autoriza interpretação ampliativa que garanta a concessão de prazo razoável, superior aos trinta dias previstos na Lei n. 4.886/66 e que seja compatível, nos termos do já visto art. 473, “com a natureza e o vulto dos investimentos”. Sobre o ponto, merece registro o voto proferido pelo Ministro Aldir Passarinho, no julgamento do REsp 1.112.796/PR, tendo sido relator do Ministro Luís Felipe Salomão, em que entendeu-se razoável que se fixasse, como aviso prévio, um mês de aviso por cada ano de vigência do contrato.
Fora das hipóteses de efetivo rompimento contratual, não tem sido incomum que empresas representadas busquem eliminar seus representantes, atendendo clientes específicos, mantendo, no entanto, o contrato. Assim, ao invés de romper o contrato (e obrigar-se a pagar as indenizações previstas na Lei n. 4.886/66), indústrias tem optado por retirar intermediários e realizar vendas diretas para certos clientes, captados, desenvolvidos e atendidos, até então, pelo representante comercial.
Mesmo aqui, o comportamento das representadas deve ser avaliado à luz do padrão ético e leal que se exige dos contratantes. A depender da relevância da tomada de clientes da empresa de representação comercial, tal conduta poderá ser configurada como meio indireto de rompimento contratual, ensejando assim o cumprimento das obrigações garantidas em Lei.
Esta última hipótese, em que a empresa representada assume diretamente clientes que foram desenvolvidos pela empresa representante, não poderá ser considerada uma situação lícita, à luz da legislação brasileira. Em primeiro lugar, porque trata-se de hipótese de enriquecimento sem causa (art. 884, Código Civil), uma vez que o produtor ou indústria que retirar os intermediários para vender para determinado cliente estará lucrando com o não-pagamento das comissões e assunção de um comprador com quem estabelecerá uma relação já comercialmente madura, em detrimento do empobrecimento do representante.
É possível ir além. Em segundo lugar, a redução relevante dos clientes atendidos pelo representante viola a já aludida boa-fé objetiva, na medida em que reste comprovado que a empresa representada não agiu de modo leal, tomando os principais clientes para si, ao invés de rescindir o contrato, exclusivamente para não pagar as indenizações cabíveis. Trata-se aqui do que em doutrina convencionou-se chamar de violação positiva do contrato, incidente quando as partes cumprem as obrigações explicitamente previstas no instrumento, mas descumprem os deveres laterais de cooperação, informação e lealdade decorrentes da cláusula geral de boa-fé.
Agindo de tal modo, a empresa representada confere ao representante a possibilidade de pedir o rompimento do contrato, na forma do art. 36, “a” da Lei n. 4.886/66. Ocorrida a resolução contratual por culpa da representada, serão devidas as indenizações vistas anteriormente, além do valor cabível, no caso de assunção de clientes da representante, pelo evidente enriquecimento sem causa.
*Ermiro Ferreira Neto é Advogado, sócio de Fiedra Advocacia Empresarial. Mestre pela Universidade Federal da Bahia e Especialista em Direito Civil. Professor da Faculdade Baiana de Direito (graduação e pós-graduação), da UNIFACS (pós-graduação) e da Fundação Faculdade de Direito – UFBA (pós-graduação). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Civil e do Instituto de Direito Privado.
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