por Dilson Jatahy Fonseca Neto
Nessa quarta-feira, dia 04 de fevereiro de 2015, o Supremo Tribunal Federal julgou Recurso Extraordinário nº592377, sobre a possibilidade de capitalização de juros. Não fez análise do direito material – a constitucionalidade, ou não, do anatocismo; essa matéria é alvo da ADIn nº 2316 –, mas apenas sobre a legalidade do procedimento de criação da Medida Provisória nº 2.170-36[1]. Essa medida provisória, última de uma série de renovações, reedições e convalidações, trata de uma série de matériase suas aplicações, em geral sobre os recursos do Tesouro Nacional. Entretanto, no artigo 5º, permite a capitalização de juros nas operações realizadas por instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, tema que nada tem a ver com o restante da Medida Provisória.
De qualquer sorte, recordei-me que, já na Roma antiga, o Direito se pronunciava sobre tal matéria – capitalização de juros, incidência de juros sobre juros ou anatocismo. Faço essa pequena contribuição sobre o tema, quiçá permitindo ampliar os horizontes dos estudantes, advogados e julgadores sobre o mérito.
A primeira observação que se faz vem de Adolf Berger[2], pelo qual se define defineusuraecomo juros como pagos periodicamente ao credor, em dinheiro ou outra coisa fungível, enquanto o principal não fosse quitado. Ulpiano, jurisconsulto romanooriginário de Tiro, Fenícia, que inclusive ocupou cargos políticos e executivos[3], afirmou claramente que os juros se equiparavam aos frutos[4].
Conforme Moreira Alves, ilustre ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal e prof. Titular aposentado de Direito Civil na Faculdade de Direito da USP, a estipulação de juros (stipulatiousurarum) era muito comum em Roma, sendo possível encontrar diversas citações sobre o tema. Inclusive, já na Lei das Doze Tábuas, estabelecia-se juros de 8,33% – não se sabe ao certo se anuais ou mensais. No final da República a maior taxa de juros aceitável pelo direitoera de 12% ao ano (ou 1% ao mês – usuraecentesimae)[5]. O Ministrocita, inclusive, que a houveram diversas leis tratando sobre o assunto, chegando mesmo a ser proibida a cobrança de juros como um todo (Lex Genucia, de 342 a.C.[1]), vedação que durou pouco tempo.
Determinadas hipóteses permitiam taxas diferenciadas de juros, legalmente estabelecidos (usuraelegitimae). Um desses casos é o empréstimo bancário, no qual, registra Juan Iglesias, os juros são aceitos mesmo as formalidades geralmente exigidasnão fossem respeitadas[2]. Na fonte citada[3], Justiniano fundamenta essa prerrogativa pois “Nam quiomnibus fere indigentibusopem ferre parati sunt, iustum non esteiusmodisubtilitatelaedi.” (= “Porque no es justo que los que están dispuestos á prestar auxilio á casi todos los que lo necesitan, sean perjudicados por tal sutileza.”[4]). De qualquer sorte, nota-se, portanto, que os bancos jamais estiveram sujeitos às mesmas regras que as demais pessoas e atividades, exatamente por sua função de financiar a sociedade.
Eis que, assim, faz-se necessário alcançar o ponto fulcral dessa exposição: o anatocismo[5]ou usuraeusurarum. Interessante, mais uma vez, a definição que Adolf Berger dá ao termo: “The transformationofinterestdueandnotpaidinto a new interestbearing principal.” (=”A transformação dos juros devidos e não pagos em novo principal sujeito à incidência de juros”, em tradução lata).
De maneira bastante simplificada: se devo R$ 100.000,00, estabelecida uma taxa de juros simples de 1% ao mês, deverei pagar a título de juros o valor de R$ 1.000,00 por cada mês que tardar em adimplir o meu débito. O capital é constante: cem mil reais. Igualmente os juros, mil reais por mês. Consequentemente, caso venha a quitar o valor apenas ao final de vinte meses, será necessário desembolsar um total de R$ 120.000,00.
Diferente é a hipótese em que se aceita a incidência de juros sobre os juros. Aqui, a cada período o valor dos juros se incorpora ao principal, fazendo com que a dívida em si cresça. Portanto, tomando o mesmo valor inicial principal de R$ 100.000,00, e a taxa de juros de 1%, no final do primeiro mês, a dívida como um todo subirá para R$ 101.000,00. Incidindo novamente juros de 1%, no final do segundo mês a dívida alcançará R$ 102.010,00. No terceiro mês, R$ 103.030,01… até que, no vigésimo mês, o valor terá alcançado R$ 122.019,00. E esse se converterá em principal, sobre o qual incidirão os próximos juros, não será mais R$ 1.000,00, e sim R$ 1.220,19.
Cícero, político, orador e advogado romano, honrado com o título de Pater Pátria, registrou, em uma de suas cartas que era comum estabelecer em seus editos juros mensais de 1% (somando 12% ao ano). Acrescentou que, caso o devedor completasse um ano inteiro sem quitar sua dívida, seria permitido converter o valor dos juros em principal, gerando assim um incremento na dívida[1].
Tal prática, conhecida como anatocismos anniversarius, era uma exceção que, conforme Adolf Berger[2], acabou sendo posteriormente proibida.No mesmo sentido, Marciano,outro jurisconsulto romano, já do período imperial[3], expressamente afirma que “Placuit, sive supra statutummodum quis usuras stipulatusfuerit, siveusurarumusuras, quod illiciteadiectum est, pro non adiectohaberi, et licitas peti posse”[4]. (= “Se determinó, que si alguno hubiere estipulado ó intereses sobre la tasa establecida, ó intereses de los intereses, se tenga por no expresado lo que ilícitamente se expresó, y que se puedan pedir los lícitos.”[5]). Em outras palavras: caso as partes estipulem juros acima das taxas permitidas ou juros sobre juros (anatocismo), tal cláusula deve ser tida como não escrita, mantendo-se o negócio apenas quanto ao restante.
Percebe-se, portanto, que havia uma tendência então, como há hoje, à proibição do anatocismo. Entretanto, tal vedação não é absoluta, sendo observáveis exceções temporais e políticas. Resta saber como o Supremo Tribunal Federal julgará o mérito hoje.
Dilson Jatahy Fonseca Neto
Advogado, especialista em Direito Tributário pelo IBET,
Mestre em Direito Romano e Sistemas Jurídicos Contemporâneos
Doutorando em Direito Civil pela USP
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