Durante mais de um ano, quatro advogadas recolheram provas materiais para denunciar por assédio moral o chefe da Procuradoria Jurídica da Câmara Municipal de Salvador, Marcus Vinícius Leal Gonçalves. O Ministério Público do Trabalho (MPT) solicitou que ele seja afastado até o dia 10 de julho. A Casa ainda não acatou a solicitação e defendeu o servidor: “Goza do maior respeito e confiança, o que não impede apurações”.
As advogadas, concursadas públicas da Câmara, afirmam ser expostas a humilhação, esvaziamento de função, chantagem, retirada da autonomia funcional e constrangimento por parte de Leal, que ocupa cargo comissionado.
Uma delas, sempre que o elevador estaciona no 3º andar do prédio onde funciona a Procuradoria, em um anexo da Câmara na Rua Ruy Barbosa, centro de Salvador, reza para não encontrar o chefe.
“O que a gente vem passando é humilhante, ultrajante, perdemos a vontade de sair de casa para trabalhar. Ele minou a gente”, conta.
Procurado, Leal afirmou ter recebido com “surpresa” a informação de que pessoas o acusavam de assédio moral e que desconhece qualquer pedido pelo seu afastamento ou apuração de eventuais denúncias. Segundo o procurador, a conversa com a reportagem foi a primeira que teve sobre o assunto.
“Falar em termos genéricos é muito difícil. Por isso me causa estranheza, meu tratamento é completamente gentil e cordial, o que existe são debates plenamente saudáveis”, disse.
Todas as denunciantes falaram à reportagem sob condição de anonimato, em meio à discussão nacional sobre assédio no serviço público iniciado depois das denúncias de assédio sexual e moral feitos pelo ex-presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães. Ele pediu demissão.
As servidoras da Câmara de Salvador também procuraram a Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Bahia (OAB-BA) para noticiar como estava o cotidiano no trabalho.
Em Salvador, as quatro advogadas decidiram denunciar o chefe em janeiro de 2021, mas só formalizaram a queixa ao Ministério Público do Trabalho (MPT) no fim de março deste ano, depois de registrarem momentos que fundamentassem a denúncia, como gravações de reuniões e conversas particulares com o chefe.
A decisão: MPT diz que denúncias relatadas ferem ‘dignidade humana’
A decisão da procuradora do Trabalho Rosineide Mendonça Moura de recomendar o afastamento de Marcus foi emitida no dia 25 de maio. Nela, Moura considera “graves” as denúncias e considera o afastamento uma consequência do assédio moral que ofende “o princípio da dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho” e viola “a ordem jurídica vigente”.
O despacho chegou à Câmara no dia 10 de junho. A partir desse dia, a procuradora do MPT solicitou o prazo de até 30 dias para o afastamento de Leal. Quatro dias depois, o presidente da Casa, Geraldo Júnior (MDB), respondeu a procuradora em ofício.
O vereador se diz “surpreso” com o teor da recomendação e pontua que o procurador chefe não teve a oportunidade de se manifestar contra a denúncia. Leal reforça que não foi procurado. O presidente da Câmara, no entanto, afirma que isso não impedirá que as denúncias sejam “justas e previamente apuradas”.
Se não adotar as providências indicadas, a Câmara está passível a sofrer medidas administrativas e judiciais. Contra Marcus Leal, pesa a denúncia de outro trabalhador. Em setembro de 2020, um funcionário da casa legislativa o denunciou ao Ministério Público Estadual (MPE) por racismo. O órgão informou que a ação está em curso e em fase de coleta de provas testemunhais.
As advogadas que agora denunciam o procurador afirmam estar adoecidas física e psicologicamente pelas condições de trabalho. E contam enfrentar o assédio desde janeiro de 2019, quando Leal chegou à Câmara para trabalhar como subprocurador – a promoção ao cargo de chefe aconteceu em novembro, como substituto de uma mulher.
“Ele, na verdade, não aceita mulher na gestão. Quando ele percebe que nosso posicionamento é diferente, ele não aceita, fala que temos função de estar ali para servir ele, guarnecer ele”, afirma uma das advogadas que o denunciaram.
“As meninas” é a forma como Leal se refere às advogadas. Segundo elas e como consta em documentos enviados ao MPT, essa seria uma das maneiras de deslegitimá-las. As outras, como também consta na denúncia apresentada ao órgão, incluem estratégias como esvaziamento de função.
Para o Superior Tribunal do Trabalho (TST), retirar a autonomia do trabalho, contestar a todo o momento as decisões de colaboradores ou tirar da pessoa o trabalho que a compete são sinais de assédio moral.
A rotina no trabalho
A Procuradoria Jurídica da CMS é a célula onde processos da casa, licitações, contratações ou qualquer ação que necessite de consultoria ou atuação jurídica são analisadas. O setor possui 10 servidores, sendo sete concursados, três comissionados e três funcionários que prestam assistência.
As advogadas que denunciaram Leal começaram a compor o quadro efetivo da Câmara em 2011, ano em que um concurso público abriu 328 vagas para novos funcionários. Leal se inscreveu, mas não foi aprovado. Em janeiro de 2019, ele foi contratado, em cargo comissionado, pelo setor jurídico, como subprocurador.
Quando Leal assumiu a cadeira de procurador chefe, em novembro, os problemas se avolumaram, segundo as mulheres que o denunciam. Pela primeira vez, elas foram avaliadas fora do ‘nível de excelência’. “A gente se esforçava, fazia de tudo, mas de repente não éramos bem-vistas”.
Embora tenham solicitado um feedback do chefe, para entender o que ia de errado, não receberam. A pandemia veio logo em seguida e gerou novos episódios de assédio, elas relatam.
As advogadas afirmam que passaram a perder, sem saber o motivo, as antigas atribuições, ter suas capacidades contestadas e serem constrangidas na frente da equipe. Hoje, uma das funções antes cumpridas por elas é realizada por recepcionista terceirizada.
“Ele já virou falando: ‘do que ela fez, eu não aproveitei nenhuma linha, nenhuma palavra’”, lembra uma das servidoras públicas.
No plantão do último final de ano, quando a equipe se divide em escalas, uma das duas servidoras foi privada de trabalhar e os processos foram encaminhados apenas para uma das advogadas. Depois de questionar ter ficado sem trabalho, foi mudada de lotação dentro da CMS. O então superior hierárquico alegou “falta de sinergia” entre ele e a servidora para movê-la de setor.
Em uma conversa anexada à queixa feita ao MPT, Leal discute com uma servidora sobre o andamento de um processo. A servidora tenta mostrar discordâncias quanto ao posicionamento do chefe. Ele responde: “Você tem de cumprir ordens, você exerce função, se você não quiser, você bate um memorando e renuncia e eu nomeio outra pessoa”. De acordo com as denúncias, coerções como essa se tornaram comuns no ambiente de trabalho.
Entre as recomendações da procuradora do MPT, está o pedido de que a Câmara elabore e divulgue “comunicação a todos os servidores da Procuradoria Jurídica da CMS, com ciência formal atestada por cada um deles e informando o compromisso do ente público de que não serão tolerados atos que caracterizem assédio moral para com seus trabalhadores”.
Procurador diz que não compactua com posturas assediadoras
Marcus Vinicius Leal afirma que não compactua com posturas assediadoras e que nunca recebeu – nem formal, nem informalmente – qualquer relato de descontentamento.
“Me causa muita surpresa, porque não compactuo com esse tipo de postura, nem adoto essa postura, quanto mais servidores. É difícil acreditar que isso tenha acontecido sem que ninguém demonstre descontentamento”.
Ao longo da entrevista, por telefone, o procurador afirmou ser difícil abordar um assunto sobre o qual não tem conhecimento. E que a rotina está normal, “nada foge do padrão de tratamento do serviço público com seu estatuto de hierarquia”.
“Não há nada que desabone minha conduta. Todos sabem que minha conduta é muito correta. Eu, na qualidade de chefe, tenho que zelar pelo órgão e isso faço com muita propriedade. Como alguém recomenda [o afastamento] sem ninguém me ouvir?”.
Nem a CMS, nem o MPT responderam aos questionamentos enviados pela reportagem até a publicação dessa reportagem.
Assédio repetitivo
O assédio moral alvo da denúncia das advogadas da Câmara é caracterizado pela exposição de trabalhadores a situações humilhantes e constrangedoras de modo repetitivo e prolongado. Esse tipo de conduta pode ser cometido tanto por superiores hierárquicos como por colegas e é evidenciado por comportamentos, palavras, atos ou gestos que comprometem a integridade física e psíquica de uma pessoa.
Em 2021, o TST apontou que 52 mil casos relacionados a assédio moral foram ajuizados em tribunais de Justiça do Trabalho espalhados pelo Brasil. Entre janeiro e maio deste ano, apenas na Bahia foram movidos 861 processos de assédio moral e outros 30 de assédio sexual, todos por funcionário da iniciativa privada, informou o órgão à reportagem.
A quantidade põe o estado na 6ª posição na lista das unidades da federação com maiores índices de ações judiciais relacionadas a assédio moral. O primeiro colocado é São Paulo, com 5.362 processos. O gênero dos autores dos processos não foi informado.
Mas uma pesquisa do Instituto Patrícia Galvão mostra que 36% das mulheres já foram vítimas de assédio no trabalho, contra 15% dos homens.
Essa preponderância pode ser explicada. Presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB-BA, Daniela Portugal justifica que as mulheres são as maiores vítimas de assédio – moral ou sexual – porque também são a maioria das vítimas de violências perpetradas pelo machismo.
“Vivemos em uma sociedade ainda patriarcal e que olha a mulher tal qual uma ‘coisa’ sobre a qual se pode exercer domínio”.
Para Daniela Portugal, mais graves ainda podem ser as denúncias de assédio no serviço público, um dos representantes da estrutura estatal que deveria prover a garantia dos direitos humanos e constitucionais, não infringi-los.
✍️ Fernanda Santana/Correio