Na Bahia, 76.736 vidas foram ceifadas em 13 anos, segundo o Atlas da Violência – uma média de 5,9 mil pessoas assassinadas, por ano, entre 2007 e 2019. Para se ter uma ideia, 391 cidades baianas possuem uma população menor que o número total destas mortes violentas pesquisadas. Pior: o principal motivo desta violência é o aumento da criminalidade associado à expansão das facções pelo território baiano.
A Secretaria de Segurança Pública (SSP) informou que 80% dessas mortes estão relacionadas de forma direta ou indireta ao comércio de entorpecentes. Esse fenômeno aconteceu a partir da morte do símbolo deste comércio ilícito, o traficante Éberson Souza Santos, o Pitty. Ele fundou a primeira facção na Bahia no final dos anos 90, a Comissão da Paz (CP), no Complexo Penitenciário da Mata Escura.
A princípio, o grupo tinha sido criado para negociar o cotidiano dos internos dentro do Presídio Salvador, mas Pitty, embebecido de ideias empresariais, aprimorou suas diretrizes e expandiu a sigla e as ideias da CP para além dos muros da unidade, formando grupos em vários bairros de Salvador. Para entrar na disputa pelo controle do tráfico de drogas na capital, o arquirrival de Pitty, o também interno do complexo Genilson Lino da Silva, o Perna, fundou a facção Caveira. Os dois comandavam todas as ações de dentro do complexo.
Enquanto a Liberdade, Caixa d’Água, Iapi, Santa Mônica, Avenida Peixe, Pernambués, Engomadeira e o Complexo do Nordeste (Nordeste de Amaralina, Santa Cruz, Vale das Pedrinhas e Chapada do Rio Vermelho) eram controlados pelo CP, Brotas, Engenho Velho de Brotas, Federação, Calabar e toda a Suburbana estavam sob o domínio dos Caveiras. No auge da guerra entre as facções, Pitty fugiu do complexo e acabou morto pela polícia, em agosto de 2007.
A partir daí, o tráfico de drogas foi pulverizado, com o surgimento de outras organizações criminosas na capital e região metropolitana e, mais tarde, no interior da Bahia.
Toda essa movimentação aconteceu logo após o controle do PT sobre o estado, começando com a vitória de Jaques Wagner na disputa de 2006, seguida pela sua reeleição em 2010 e dois mandatos do atual governador, Rui Costa, eleito em 2014 e reeleito em 2018.
“O Estado falhou por não conseguir detectar esse processo, de não adotar as medidas necessárias para frear, como fortalecer mais o sistema de segurança pública, aumentar o efetivo das polícias e se articular com os órgãos federais para poder fazer frente a esse processo”, declarou o especialista em segurança pública e coordenador do curso de Direito do Centro Universitário Estácio da Bahia, coronel Antônio Jorge.
Além da CP e dos Caveiras, a Secretaria de Segurança Pública passou a lidar com novos problemas: o surgimento do Bonde do Maluco (BDM), que foi uma dissidência dos integrantes mais cruéis dos Caveiras e que passou atacar os territórios dos ex-comparsas e da CP, e também com a chegada do Katiara dominando a região do Recôncavo do estado. “Faltou uma visão mais ampla, faltou antecipação, por que isso não aconteceu de uma hora para a outra, isso já vinha e hoje buscamos paliativos para fazer frente a esses grupos”, criticou o coronel Antônio Jorge.
Há poucos mais de cinco anos, novas facções surgem no cenário, como Ordem e Progresso (OP) e o Bonde do Ajeita, acirrando ainda mais os confrontos pelo domínio do tráfico, principalmente na capital e Região Metropolitana de Salvador (RMS).
Assim como acontece nos bairros soteropolitanos e cidades da RMS, o Complexo Penitenciário da Mata Escura, o maior do estado, também é dividido por facções que disputam o controle do tráfico na Bahia. Segundo o Sindicato dos Servidores Penitenciários do Estado da Bahia (Sinspeb), a divisão se faz necessária para evitar uma “carnificina” no complexo penitenciário. Mas nada disso conseguiu evitar a chacina no complexo em fevereiro desde ano. Durante uma rebelião, dos 17 feridos, 11 foram baleados – cinco morreram.
“A expansão das organizações ligadas ao comércio das drogas ilícitas está diretamente ligada à opção do estado na política de guerra. Tanto do ponto de vista de organizar o território a partir da distribuição da violência, como a superlotação do sistema prisional, que está diretamente ligado ao comércio ilícito de drogas e que se conecta com diversos outros ilícitos que impactam na segurança pública nas cenas urbanas e rurais”, declarou o co-fundador e coordenador executivo da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, Dudu Ribeiro, integrante da rede de Observatórios de Segurança.
Alianças
Em 2020, aconteceu uma aliança forte e perigosa para a segurança pública na Bahia. A facção Comando da Paz se tornou célula de uma das maiores organizações criminosas do país, o Comando Vermelho (CV). Ou seja, o CV não fornecia apenas armas e drogas para o estado: ele se estabeleceu em bairros de Salvador. “Nosso estado vem sendo há algum tempo alvo de uma dinâmica entre as organizações criminosas. A aliança entre as facções locais com as nacionais. Com isso, houve um acirramento entre essas facções pela conquista e manutenção dos territórios”, declarou coronel Antônio Jorge.
De acordo com fontes da SSP, a aliança entre a CP e o CV não surgiu somente do interesse da organização carioca. Os traficantes Joseval Bandeira, o Val Bandeira, e Leandro Marques Cerqueira, o Leandro P, queriam há bastante tempo eliminar o líder da OP, Thiago Adílio dos Santos, o Coruja.
Apesar de terem o CV como fornecedor de armas e drogas, a CP e a OP são rivais – a OP é uma dissidência da CP e tem o controle do tráfico na Liberdade, Iapi, Cidade Nova, Santa Mônica e Sieiro. Todos esses bairros já foram um dia as principais áreas de atuação do CP fora do complexo do Nordeste de Amaralina, quando o seu principal fundador, Pitty, ainda estava vivo.
As conexões com o narcotráfico passaram a ser mais intensas e por consequência o aumento de assaltos, assassinatos e outros tipos de crimes no estado, o que influenciou nos números citados no início da matéria. “No nosso monitoramento da rede de observatório da segurança pública da Bahia, é um fator de expansão das organizações criminais, tendo alimentado outras lógicas de conflitos territoriais, como venda de armas, corrupção no estado e participação de agentes públicos”, disse Dudu Ribeiro, integrante da rede de Observatórios de Segurança.
Interior
A escalada da violência desses 13 anos do governo do PT não ficou restrita à capital. O interior do estado também vem perdendo o ar bucólico para o tráfico de drogas, assalto, explosões de bancos e caixa eletrônicos, homicídios, sequestros e outros tipos de criminalidade, que antes eram só vistas em Salvador. “Antigamente não se tinha problema de drogas nas cidades do interior. Hoje, tem. Esse processo está acontecendo em todo o estado”, comentou o especialista em segurança pública e coordenador do curso de Direito do Centro Universitário Estácio da Bahia, coronel Antônio Jorge.
Ao contrário de Salvador, as facções no interior são independentes, como a DMP, que controla os bairros de Daniel Gomes, Maria Pinheiro e Pedro Jerônimo, em Itabuna, região sul do estado. O grupo surgiu em 2014 e vem disputando o domínio na região com os rivais do Raio A e Raio B. A 277 km de Itabuna, Porto Seguro vive também confrontos diários entre os grupos CP (Campinho) e MPA (Mercado do Povo Atitude).
Ainda no sul da Bahia, o Terceiro Comando é a maioria em Ilhéus. Em Vitória da Conquista, na região sudoeste, o BDN (Bonde do Neguinho) surgiu em 2019 e hoje detém os comércio de entorpecentes da cidade e adjacências. Já no Extremo-sul, em Eunápolis, a atuação é do Primeiro Comando.
Solução
Para a professora de Direito Penal e Processual e de Movimentos Sociais da Universidade Estado da Bahia (Uneb), Márcia Margarida Martins, mestre em Segurança Pública pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), a solução não está na construção de presídios. “Não é encarcerar a juventude ou matar os jovens negros da periferia. É resgatar eles antes que cheguem aos presídios, é aproveitar através da educação para evitar a ressocialização”, disse.
A especialista aponta outras medidas que deveriam ser adotadas pelo governo do estado. “ Se tivéssemos as políticas públicas necessárias nos bairros periféricos, para amparar esses jovens desamparados, certamente teríamos um grande número deles longe da criminalidade e nós não teríamos esse número exorbitante referente às facções. Se você desampara a periferia e os traficantes vão lá para ampará-los, obviamente vai receber o amparo de quem está dando”, declarou.
O CORREIO procurou a Secretaria de Segurança Pública, mas não obteve resposta até o fechamento da edição.
HOMICÍDIOS NA BAHIA
2007 – 3.645
2008 – 4.797
2009 – 5.432
2010 – 5.844
2011 – 5.549
2012 – 6.148
2013 – 5.694
2014 – 6.052
2015 – 6.012
2016 – 7.171
2017 – 7.487
2018 – 6.787
2019 – 6.118
Por Bruno Wendel/Correio