De pé, na porta da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam) de Brotas, Maria* aguarda atendimento com as mãos cruzadas em frente ao peito. É sexta-feira, 5 de abril, e ela espera sua vez de fazer uma denúncia. Só este ano, as duas delegacias que atendem casos como o dela receberam, em média, 32 mulheres todos os dias para fazer queixas de agressão.
O caso de Maria aconteceu há 10 dias, quando ela escapou da morte ao correr para não ser golpeada com um facão. O criminoso era um homem com quem ela teve um rápido envolvimento. Ele não aceitava o ‘fim’ da relação.
A denúncia entrou para a conta dos 3.020 casos registrados nas duas delegacias em em 95 dias, completados na sexta-feira (5) – o equivalente a 1,3 mulher agredida por hora em Salvador. “A maioria dessas mulheres é dependente do companheiro e vêm à delegacia quando chegam no limite”, declara a delegada Aída Burgos, titular interina da Deam de Brotas.
Na Deam de Brotas, de janeiro até esta segunda-feira (8), foram 1.952 ocorrências. “São de várias espécies, mas as três principais são lesões corporais, aqueles casos em que as mulheres chegam com lesões visíveis no corpo; ameaças de todos os tipos, inclusive de morte; e as vias de fato, do tipo beliscão e empurrão. Tem também os casos de ofensa, mas é em número bem menor”, aponta a delegada.
Segundo Aída Burgos, as mulheres que chegam à Deam têm, na maioria dos casos, entre 25 e 45 anos. Em geral, negras.
“São mulheres mais dependentes, que não trabalham, que têm o número de filhos grande, que não tiveram oportunidade. A dependência econômica é a predominância”, relata.
Ainda de acordo com a delegada, 90% das agressões são cometidas pelo companheiro, namorado, ex-companheiro e ex-namorado: “É aquele homem que tem ou teve relação afetiva com a mulher e não aceita o fim da relação. Quando ela vem à delegacia, nunca é a primeira agressão. É porque a situação perdura e chegou ao limite”. Cerca de 40% das que registrarm, no entanto, não voltam à delegacia.
Facão
O caso de Maria não foi diferente. Moradora de Sete de Abril, ele foi à Deam na última sexta contar sua história. “Andava na rua quando alguém gritou: ‘corre, ele vai te cortar, te matar’. Olhei para trás e vi ele atrás de mim com o facão e corri”, contou.
Antes desse episódio, Maria disse que o homem havia lhe ameaçado. “Ele me xingou de vagabunda e disse que ia cortar a minha cabeça”, relatou. Ela disse que teve um relacionamento rápido com o criminoso, mas resolveu não procurá-lo mais.
“Ficamos algumas vezes, mas descobri que ele é casado e, então, decidi pôr um fim. Mas ele não quis. Me mudei, mas não me sinto segura. Durmo com tudo trancado. Tenho medo que ele me encontre e me mate”, disse, após registrar a ocorrência.
Periperi
De janeiro até sexta-feira (5), a Deam de Periperi registrou 1.095 casos de agressão. “Esses números são expressivos, porque tudo começa de uma coisa mais leve, como agressão moral. Se não houver a denúncia pode haver a progressão para o feminicídio”, diz a delegada Simone Moutinho, titular da unidade.
Segundo a delegada, assim que mulher chega à unidade, é registrada uma ocorrência. “Se ela estiver com lesões, emitimos uma guia de exame de corpo de delito”, explica. Nesse caso, a vítima é encaminhada ao Instituto Médico Legal Nina Rodrigues.
“O resultado leva, em média, 20 a 30 dias. Em paralelo, a vítima retorna à delegacia para ser ouvida. Depois de tudo, o agressor é intimado para depor”, detalha a delegada.
Mudança
Apesar de a maioria dos casos de agressões registrada nas Deams ser de mulheres dependentes financeiramente dos agressores, um outro perfil tem chegado às delegacias. “Temos notado o crescimento de mulheres profissionais liberais, com independência financiara, que resolveram denunciar. As mulheres estão tendo coragem. Temos casos na Pituba, Barra e outros bairros nobres”, pontua Aída Burgos.
Um exemplo é o caso da promotora Lolita Lessa Mota Barbosa, que denunciou por agressão o marido, Hélio Lessa Mota Barbosa, que é empresário e militar da reserva. O inquérito foi instaurado na Deam de Brotas e encaminhado ao Ministério Público do Estado (MP-BA). Na sexta, a Justiça aceitou a denúncia.
A denúncia foi acatada pela juíza Ana Queila Loula, da 3ª Vara de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Salvador. Hélio Barbosa irá responder na Justiça por dois atos de lesão corporal, cinco de ameaça e uma tentativa de estupro, além de ter submetido a filha a constrangimento.
A desembargadora Nágila Brito, presidente da Coordenadoria da Mulher do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), comentou. “Todas as mulheres estão suscetíveis a isso. Essas relações são muito complexas, porque envolvem sentimento, um relacionamento. Para isso, a lei é fria e é geral para todos. Não é pelo fato se ter acontecido com uma juíza, promotora ou médica. A justiça tem que ser célere para todos. Quando se cumpre a lei com agilidade, se evita muita coisa”, afirma.
Suscetíveis
A comandante da Ronda Maria da Penha, major Denice Santiago, concorda que todas as mulheres estão suscetíveis à violência doméstica. Para ela, o caso da promotora Lolita Lessa Mota Barbosa, agredida pelo marido Hélio Miguel Mota Silva Barbosa, só reforça isso.
“Antes de qualquer coisa, ela é uma mulher. Uma mulher como qualquer outra que está suscetível, sim, à violência doméstica”, diz.
A policial destaca que a violência doméstica é um crime cultural e que transcende questões como relação econômica e de poder, por exemplo. De acordo com ela, mulheres de todas as religiões, cores e classes sociais são atingidas por isso.
A dependência pode ser social: “Existem pessoas que querem manter marido ao lado para mostrar para a sociedade que são mulheres comprometidas, que têm casamento. É a dependência cultural em que as mulheres foram ensinadas que precisavam casar e manter o casamento a todo custo”.
Para ela, os números mostram que a dependência econômica não é o mais importante, já que 79% das mulheres atendidas pela Ronda Maria da Penha são responsáveis pelo sustento. “A dependência financeira não é o ponto preponderante da manutenção do relacionamento abusivo. Eu aposto muito mais na perversidade da sociedade atrelar sempre a mulher a uma relação conjugal”, destaca.
Major Denice Santiago é a comandante da Ronda Maria da Penha (Foto: Evandro Veiga/Arquivo CORREIO) |
“A mulher continua com o marido mesmo após as agressões porque ela acredita que ele vai mudar, que é uma fase, que ele vai melhorar. E as mulheres são educadas, toda a vida, para manter casamento até que a morte os separe”, acrescenta.
A comandante da Ronda Maria da Penha ainda aconselha que mulheres que estejam passando por situações de violência procurem auxílio, além de apoio psicológico e de advogados.
“Não é fácil romper relacionamentos abusivos quando existe essa dependência cultural. Tem que ser forte para evitar que seja uma falsa ruptura, que ela termine mas volte depois. É bom procurar uma psicóloga, uma amiga que a escute sem ser punitiva. A delegacia é um recurso quando a violência já estiver ferindo, mas não é a única porta de entrada. A denúncia é uma coisa muito particular e pessoal”, defende.
ONDE BUSCAR AJUDA EM CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA?
Cedap (Centro Estadual Especializado em Diagnóstico, Assistência e Pesquisa)– Atendimento médico, odontológico, farmacêutico e psicossocial a pessoas vivendo com HIV/AIDS. Endereço: Rua Comendador José Alves Ferreira, nº240 – Fazenda Garcia. Telefone: 3116-8888.
Cedeca (Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan) – Oferece atendimento jurídico e psicossocial a crianças e adolescentes vítimas de violência. Endereço: Rua Gregório de Matos, nº 51, 2º andar – Pelourinho. Telefone: 3321-1543/5196.
Cras (Centro de Referência de Assistência Social) – Atende famílias em situação de vulnerabilidade social. Telefone: 3115-9917 (Coordenação estadual) e 3202-2300 (Coordenação municipal)
Creas (Centro de Referência Especializada de Assistência Social) – Atende pessoas em situação de violência ou de violação de direitos. Telefone: 3115-1568 (Coordenação Estadual) e 3176-4754 (Coordenação Municipal)
Creasi (Centro de Referência Estadual de Atenção à Saúde do Idoso) – Oferece atendimento psicoterapêutico e de reabilitação a idosos. Endereço: Avenida ACM, s/n, Centro de Atenção à Saúde (Cas), Edifício Professor Doutor José Maria de Magalhães Neto – Iguatemi. Telefone: 3270-5730/5750.
CRLV (Centro de Referência Loreta Valadares) – Promove atenção à mulher em situação de violenta, com atendimento jurídico, psicológico e social. Endereço: Praça Almirante Coelho Neto, nº1 – Barris, em frente a Delegacia do Idoso. Telefone: 3235-4268.
Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher) – Em Salvador, são duas: uma em Brotas, outra em Periperi. São delegacias que recebem denúncias de violência contra a mulher, a partir da Lei Marinha da Penha.
Deam Brotas – Rua Padre José Filgueiras, s/n – Engenho Velho de Brotas. Telefone: 3116-7000.
Deam Periperi – Rua Doutor José de Almeida, Praça do Sol, s/n – Periperi. Telefone: 3117-8217.
Deati (Delegacia Especializada no Atendimento ao Idoso) – Responsável por apurar denúncias de violência contra pessoas idosas. Endereço: Rua do Salete, nº 19 – Barris. Telefone: 3117-6080.
Derca (Delegacia de Repressão a Crimes Contra a Criança e o Adolescente) – Endereço: Rua Agripino Dórea, nº26 – Pitangueiras de Brotas. Telefone: 3116-2153.
Delegacias Territoriais – São as delegacias de cada Área Integrada de Segurança Pública. Segundo a Polícia Civil, os estupros que não são cometidos em contextos domésticos devem ser registrados nessas unidades. Em Salvador, existem 16 (https://www.policiacivil.ba.gov.br/capital.html).
Disque Denúncia – Serviços de denúncia que funcionam 24 horas por dia. No caso de crianças e adolescentes, o Departamento de Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos oferece o Disque 100. Já as mulheres são atendidas pelo Disque 180, da Secretaria de Políticas Para Mulheres da Presidência da República.
Fundação Cidade Mãe – Órgão municipal, presta assistência a crianças em situação de risco. Endereço: Rua Prof. Aloísio de Carvalho – Engenho Velho de Brotas.
Gedem (Grupo de Atuação Especial em Defesa da Mulher do Ministério Público do Estado da Bahia) – Atua na proteção e na defesa dos direitos das mulheres em situação de violência doméstica, familiar e de gênero. Endereço: Avenida Joana Angélica, nº 1312, sala 309 – Nazaré. Telefone: 3103-6407/6406/6424.
Iperba (Instituto de Perinatologia da Bahia) – Maternidade localizada em Salvador que é referência no serviço de aborto legal no estado. Endereço: Rua Teixeira Barros, nº 72 – Brotas. Telefone: 3116-5215/5216.
Casa da Defensoria de Direitos Humanos – Atendimento especializado para orientação jurídica, interposição e acompanhamento de medidas de proteção à mulher, através do Nudem (Núcleo Especializado na Defesa das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar da Defensoria Pública do Estado). Endereço: Rua Arquimedes Gonçalves, 482, Jardim Baiano – 3324-1579.
Secretaria Estadual de Políticas Para Mulheres – Endereço: Alameda dos Eucaliptos, nº 137 – Caminho das Árvores. Telefone: 3117-2815/2816.
SPM (Superintendência Especial de Políticas para as Mulheres de Salvador) –Endereço: Avenida Sete de Setembro, Edifício Adolpho Basbaum, nº 202, 4º andar, Ladeira de São Bento. Telefone: 2108-7300.
Serviço Viver – Serviço de atenção a pessoas em situação de violência sexual. Oferece atendimento social, médico, psicológico e acompanhamento jurídico às vítimas de violência sexual e às famílias. Endereço: Avenida Centenário, s/n, térreo do prédio do Instituto Médico Legal (IML) Telefone: 3117-6700.
1ª Vara de Violência Doméstica e Familiar – Unidade judiciária especializada no julgamento dos processos envolvendo situações de violência doméstica e familiar contra a mulher, de acordo com a Lei Maria da Penha. Endereço: Rua Conselheiro Spínola, nº 77 – Barris. Telefone: 3328-1195/3329-5038.
Fonte: Correio.
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